terça-feira

O cheiro da noite

engoliu as escadas
encontrou a rua
e sentiu a harmonia
do céu de cartolina

era uma madrugada
que a chuva lavou
e não havia carros
mandando em seus passos

foi expulso do colo
de um piano morno
de um doce incenso
lânguida fumaça

a noite era fresca
cheirava como castanha
e úmidas verdades
de grossas raízes

quarta-feira

Palavra

Palavra é cão sem dono
que roça e acua
entre as lembranças.
Por vezes linha
tinta avulsa
fio, início e fim
de meadas.
É resina bruta
cera pastosa
perfuma e gruda
pelo gogó.
Vapor de ecos
suor de suspiros
saliva das ruas
ou suco de vida
represada...
O que doura e derrete
refresca e afoga
reúne e amarra.
Criança mimada
que irrita e encanta,
é visita íntima
e entra sem pedir.
Palavra,
criatura morta-viva
que desconsidera
o apagar das luzes.
Num convite
ou num assédio
descuido inocente
ou sincera traquinagem
sempre toma
o meu sono.

segunda-feira

Lamento

Nas chuvas de agosto
eu perdi os sapatos
e promessas singelas
de bem querer.

teus cabelos longos
e negros
teus olhos tão grandes
e negros
teu corpo negro
num céu negro
de agosto

Nas chuvas de agosto
o céu lamentava
gota a gota
molhou as ruas
e os pés
e as lentes
e a cidade chiava
e a cidade dormia
lamento do céu
lamento de um samba
lamento de um peito
provinciano.

a limpo

Minhas roupas
com minha gordura
Minha pele
com meu sal
As páginas
com meus dedos
O tempo
e alguns discursos
(sou cada uma
dessas linhas)

sexta-feira

Folha

Foge folha,
tão sazonal
quanto um lamento
tão desprendida e cega
quanto uma cólera
tão brilhosa e macia
quanto um devaneio
tão reticente e dependente
quanto um coração
tão verde e discreta
como um primeiro beijo.
Foge folha,
ao sabor do vento,
num ritmo ditado
pelos dribles cretinos
desse tempo.

Ainda frio

O gato mia
O vento uiva
A janela bate
A porta range
O assoalho estala
A lenha crepita

Todos querem companhia
numa noite de inverno.

Lenhador

Há poucas trilhas
pra percorrer teu espaço
bruto, exótico, fechado.
Quando racho teus ecos
explodem lascas de idéias.
Recolho e empilho paciente
cada porção de lembrança.
Experimento a distância
entre coxilhas geladas.
Descanso.
Com uma cuia fumegante
observo frases de amor
e o tempo infiel
congelando seus contornos.
Nada quero queimar,
espero tua primavera
e me aqueço
debulhando outras sentenças.

domingo

É frio

É frio que borbulha
belisca e arranha
provocando as artérias
assanhando os pulmões.

É frio e é noite
açoite de chuva
de vento afiado
estilhaço de beijos
de línguas geladas.

Rapidamente avançam
pelo meio da espinha
deságuam
com a madrugada
num copo de ânsia.

O corpo enverga
a seiva encolhe
o peito retesa
os lábios hibernam
enquanto esperam
a primavera da flor.

segunda-feira

Filhos do preto e branco

O negro nega
na grave brisa
granadas de bruma
que o branco cega

Negue que o negro
branco fizesse
já que a brasa
logo acontece
logo enegrece.

Negue que o branco
negro fizesse
já que o negro
logo acontece
logo que o branco
desaparece....

Na manhã dourada
sobre a cinza branca
o azul do mar
violetas envenenadas
vinhos – vinagre.

No gramado verde
nossas bocas rosadas
e alguns sonhos,
rubros.

Ferida

Reli as próprias linhas.
Subi num palco fantasiado
Beijei a vida
(Eu, e minha íris bisonha).

Evitei acordar
em algumas manhãs
mantive tranqüila
a úlcera da urbe.

Visitei parques floridos
em sábados de futebol.
Contei segredos,
enchi de balas
o bolso de moleques.

Fiquei lavado e perdido,
como um leitor de salmos
respirando um despropósito...

Fumando Solidão

Lágrimas de picumã.
Formigas nas idéias.
As cortinas de fumaça
na calçada gelada
fizeram eu pisar
nos próprios cadarços...
Farelos de pão
fermentando meu terno.
(fiel trança de hábitos noturnos)
Pregos enferrujados
entre as palavras.
Ilustre sombra, 
esperando o sol
povoar os varais. 

sexta-feira

Trôpega tarde

Matos e crianças germinam nas ruas.
Minha amassada e solitária vizinha
xinga e chuta seu inseparável parceiro,
que lambe e morde as pedras do quintal.

Em algum lugar alguma coisa está queimando.

Alguma fúria urbana tropeçou
ali na esquina.
Se encheu de vidro e aço,
encheu de entusiasmo
meia dúzia de curiosos.
E os sinos, lá de longe,
lembram os curiosos
de que é bom sofrer...

E o meu rádio vai soprando,
esgotando a última pilha.
A trilha se arrasta
e as notas tropeçam
e grudam como fumaça
entre os pêlos do corpo.

Meu couro amarelado vai esfriando
com o cair da tarde...

quinta-feira

Coçando o saco

Será que meus dias
anunciam dramas?
Meu quarto escuro
revela roteiros?
Será que o que resta
é rebater ecos?
E seriam os jornais
peneiras da vida?
E os teus conselhos
soluços vaidosos?
Por que, logo agora,
virou meu turno de intrigar?
De tragar novos papéis
e regurgitar conclusões?
Por que fui plantado sem avisos
nessas esquinas já tão familiares
travestidas de ordem
por braços de concreto?
Seriam essas esquinas
capítulos vivos
que velam os homens?

Maus Tempos

Aqui, onde o sol não tem graça
e esquenta muitas manias,
nasce, de quando em quando,
uma cantiga mimada
com fome de fogo.
E parecem não se importar
com suas vozes rachadas,
parindo frases desidratadas.
Impossível rasgar essa atmosfera confusa,
pois qualquer ímpeto é precipitação
e anúncio de longos temporais,
tão sem graça como um sol
do meio-dia.

sexta-feira

Mais uma noite

Nas últimas gotas vermelhas
do veneno solar,
um sereno salgado,
saboreado pelas primeiras tragadas
(orquestra muda
de jovens centelhas).
Um couro delicado vai borrando as calçadas
vestidos barulhentos contorcem na esquina
E aromas coloridos
E becos ferinos
Tranças, cachos e cachecóis
Coletes, golas e galãs
Laços, lãs e leides
E vidros e óleo e gasolina
Tudo Tudo engrenado
aos apitos de alguma locomotiva.
Cães me guiam
Serpentes me arrastam...
A cidade está bêbada, beibe
e não consigo te encontrar.

terça-feira

Amante Insone

No hálito das noites quentes
tive medo de apodrecer
com todas as frases do corpo.
Te encontrei serena
alimentando lobos cegos
e na palma da tua mão
colhi vida.
E agora,
nenhum volume antigo
restou do teu acervo.
Nem um trágico murmúrio
amarrou nossas gargantas.
É penoso rasurar humores
e beber imagens envenenadas
que brincam faceiras
em recreios diabólicos.
Depois chega o dia.
E ainda, na hora do café,
lá está você, no negro vapor,
no amargo cozido e quente
amornando a face e os lábios.

João S. A.

A placa de PARE
era o pai espiritual.
Na sombra da marquise
encontrei minha mãe
namorando brasões;
dedilhando promessas,
me mandou ir à escola.

Deslizei entre os cabides
e sentei no milharal.

Por um quarto de sol
namorei o púlpito,
e do amante ingrato
recebi apaixonado
um ramalhete de outdoors.

Fugi de desgosto,
cruzei os esgotos
e os ratos barulhentos.
De ouvidos zunindo,
ia desmontando os ruídos,
até encaixar meus nervos
num discurso régio
de marca registrada.

Agora sou feliz...!

Transito seguro,
desfilo contente
em todas as praças.
Dezenas de autoridades
Dezenas de insígnias
sempre anunciam
a minha chegada.

Cartas

Há tempos não ganho cartas...
só cores emprestadas,
convites anônimos,
bilhetes inutilmente secretos...

Espero na varanda
coçando o queixo;
mas que sina alérgica
reconhecer sem conhecer,
vislumbrando constrangido
respostas sem perguntas!

Codifico sem ler,
calculo sem ter.
Lavo minhas mãos,
cozinho e mastigo folhas amargas
(e é mentira:
não me sinto tão saudável).