quinta-feira

Ilusionismos

Aparências enganosas
são as vozes que pintamos
e congelamos em telas,
imprimindo dragões
que exigem respeito.

Discussão

Você jogou-se violenta
numa interrogação.
Me esperou espinhosa
com seus dois pontos.
Eu fui abrindo parênteses,
mas fui surpreendido
pela ironia das aspas
que fiz questão de sublinhar.
Daí arranquei teu travessão,
anunciei um ponto
(mas a verdade é que pensei ponto-e-vírgula).
Você não esperou novas linhas,
atirou uma exclamação
e eu fui embora
catando reticências...

sexta-feira

Lábios Cinzas

Fecha logo essa porta.
Em nome das horas etéreas
onde o vento surpreendia ânsias
e arrastava sibilos e nudezas
antes de pular da janela.

Era possível virar as costas
de qualquer forma.
Eu já não era poesia;
existia editado e impresso
pra folhear na certeza
de um percurso numerado,
como um logos enjaulado.

Cada palavra como lança.
Cada sentença, sentenciando grilhões
a cortarem toda carne
(onde todos os códigos vacilam).

Agora há fantasmas pelo corpo,
perturbando o meu sono.
Há cinzas pelos dedos, pela roupa,
pelos sonhos.

Agora há pregos nas escadas
há paredes chamuscadas
lamentos que gotejam
num chão úmido e sulcado
pelas ondas do tempo.

Agora transpiro sombras
que assustam as mobílias
povoando cada ladrilho,
desde a primeira poeira
que pousou desconfiada.

Chuva Negra

O atropelo das vozes
na calçada espumosa
descascou a tinta
das nossas retinas.

Foi assim que caiu
sobre pés desconcentrados
um céu nervoso e turvo,
uma cria faminta
com uma boca raivosa
de línguas elétricas,
babando e berrando.

E assim,
no cruzamento dos passos
não houve bicho requintado
que esperou gentilmente
os sinais abrirem.

E logo,
as vidas desabrigadas
reencontraram destinos
sentadas à mesa
no avanço da noite.

Quando a chuva cessou,
continuaram sentados
esticando lençóis
bordando em linhas verdes
novas notas excêntricas.

Ana

Lá vai Ana
oferecendo em sigilo
equações insolúveis.

Alheia e visceral
riscando a matriz urbana
em ângulos calculados.

Que absurdo doce
quando cifrava as horas
pra sentir teu cheiro
flamejar castigante...!
Rajadas violentas
crispando a traquéia...

Depois me amarrava no teu avesso
me vestia do teu couro
folheando tuas rosas
descobrindo novos odores
chafurdando na poça
do teu sexo.

No final ouvia canções,
navegando ao sabor
dos teus predicados.
Repetia teus dengos
imitava teus olhos
sem conseguir uma linha
de tradução.

Lá vai ela, atravessando.
Ai Ana....
foi a exceção mais categórica
a ficção mais aberta
a estrofe mais curta
e marcante.

Entre pelos

Vem aqui felina,
curiosa e arisca
comer na minha mão.
Cintilando de um negro,
no livre emprego
de uma língua vaidosa.

Vem aqui fera
ingrata e sensível
que essa postura, segura!
Dá ganas de oferecer
a mão às mordidas...

Ensina-me esse sono
esse olhar langoroso
esse pulo manhoso
esse trote convencido
esse pedido decidido
esse ronronar impudico
esse charme contido
essa zombaria ultrajante
nas horas de abandono.

De pupilas, por vezes, distantes
me convence de que vem
de algum lúgubre vale
e, confundida na noite,
uma tristeza me invade
exigindo desculpas
por ter de implorar
um último afago.

Conselhos

Acordei ao lado de segredos
acumulados na minha coberta
e babando no meu travesseiro.

E agora que sou eu
tava ali naquele universo
gerente de necessidades
como qualquer ser humano.

Onde estavam meus conselheiros
quando fucei gavetas
procurando mapas perversos?

E pra que dependi de calendário
pra revisitar sozinho
meus próprios dias santos
e fabricar meus feriados?

Quando for tirar umas férias
vingando um sabor salgado
zombando o azar dos acasos
o poder dos culpados
e o poder de culpar,
vou desovar tartarugas
relançando no mar avisos
de promessas centenárias.