quarta-feira

Consciência

Essa agulha fere
quando tece elogios
o meu texto prefere
uma trama sem fios.

Se a estrofe é rubra
teu verbo ignora
me pede que cubra
o que te apavora.

Ah, se eu soubesse
que isso cansava!
Ah, se eu pudesse
não te conservava!

Já vivo embrenhado
num assédio tétrico,
num brinquedo métrico
me sinto vingado.

terça-feira

Férias no campo

A casa velha
ainda vive
no fim do morro.

Naqueles anos,
a mistura de gritos...
o fogo ardia
água fervia
tudo cozia
a velha ria
da gritaria
a casaria
se chacoalhava
e fumegava
pelos canos.

A velharia se esconde
no escuro.
Cada madeira
que cobriu vida
recende a morte.

A casa é cinza
e entortada.
Ainda vive
abandonada
no fim do morro.
Ainda assiste
o fim dos dias.
Logo as raízes
irão cobrir
sua lembrança.

segunda-feira

Outono

O verão passou
e o vento secou
nossa maresia.
A folha manchou
e a rua se encheu
de melancolia;
mas quem vai negar
a rua faz suspirar
e sangrar
poesia.

domingo

Hora de dormir

Só restou a cauda da noite.
Então me deito
naquele azul-marinho
das primeiras horas,
confundindo as sombras do vinho
com as do leito.
Quando a fresca manhã
penetra nos poros
a terra ainda está oca.
A respiração lá fora
nada empurra.
O silêncio da janela
é cândida vigilância.
A luz vai jorrando
e nessa hora
o mesmo sol, que logo assola
e me aborrece
vejam só...
vai penetrando envergonhado,
revelando cortinas de pó;
e no seu ensaio calado,
oferece um prisma
que consola.

Os sofrimentos de X na era Y

I

Comecei por revirar
o teu quarto queimado
por tantos sinais.
Foi fácil encontrar
meu clichê lapidado
por ondas digitais!

Conectando circuitos
em delírios estéticos
(que logo resolvem atiçar meus medos...)
fico chocado por muitos
daqueles momentos patéticos
a revisar enredos.

II


as letras da boca
eram regras pra medir os lábios
a cada intervalo de tempo

os suspiros diurnos
eram recortes amontoados
de jornais amarelados

os atalhos secretos
eram páginas quentes
de um sonho noir

os filamentos da face
com poucas certezas
bruxuleantes

e a madrugada das baratas
você esmagou
civilizadamente

Operários

Ocultos estão os planetas
que abrigam finas imagens
e obrigam a narrativa
a rastejar como cobra
no trânsito dos sonhos,
no universo desafinado
de certezas virginais.

Nessa
- de juntar a porca com o parafuso
- de peneirar palavras e usos
se vai o dia.
O tráfico de interpretações
não reparte e nem dissolve
qualquer agonia.

Ao trabalho imperfeito
resta um sorriso encardido.
O dia seguinte
é comédia anunciada:
ver um cão correr ofegante
atrás do próprio rabo.

quinta-feira

Ilusionismos

Aparências enganosas
são as vozes que pintamos
e congelamos em telas,
imprimindo dragões
que exigem respeito.

Discussão

Você jogou-se violenta
numa interrogação.
Me esperou espinhosa
com seus dois pontos.
Eu fui abrindo parênteses,
mas fui surpreendido
pela ironia das aspas
que fiz questão de sublinhar.
Daí arranquei teu travessão,
anunciei um ponto
(mas a verdade é que pensei ponto-e-vírgula).
Você não esperou novas linhas,
atirou uma exclamação
e eu fui embora
catando reticências...

sexta-feira

Lábios Cinzas

Fecha logo essa porta.
Em nome das horas etéreas
onde o vento surpreendia ânsias
e arrastava sibilos e nudezas
antes de pular da janela.

Era possível virar as costas
de qualquer forma.
Eu já não era poesia;
existia editado e impresso
pra folhear na certeza
de um percurso numerado,
como um logos enjaulado.

Cada palavra como lança.
Cada sentença, sentenciando grilhões
a cortarem toda carne
(onde todos os códigos vacilam).

Agora há fantasmas pelo corpo,
perturbando o meu sono.
Há cinzas pelos dedos, pela roupa,
pelos sonhos.

Agora há pregos nas escadas
há paredes chamuscadas
lamentos que gotejam
num chão úmido e sulcado
pelas ondas do tempo.

Agora transpiro sombras
que assustam as mobílias
povoando cada ladrilho,
desde a primeira poeira
que pousou desconfiada.

Chuva Negra

O atropelo das vozes
na calçada espumosa
descascou a tinta
das nossas retinas.

Foi assim que caiu
sobre pés desconcentrados
um céu nervoso e turvo,
uma cria faminta
com uma boca raivosa
de línguas elétricas,
babando e berrando.

E assim,
no cruzamento dos passos
não houve bicho requintado
que esperou gentilmente
os sinais abrirem.

E logo,
as vidas desabrigadas
reencontraram destinos
sentadas à mesa
no avanço da noite.

Quando a chuva cessou,
continuaram sentados
esticando lençóis
bordando em linhas verdes
novas notas excêntricas.

Ana

Lá vai Ana
oferecendo em sigilo
equações insolúveis.

Alheia e visceral
riscando a matriz urbana
em ângulos calculados.

Que absurdo doce
quando cifrava as horas
pra sentir teu cheiro
flamejar castigante...!
Rajadas violentas
crispando a traquéia...

Depois me amarrava no teu avesso
me vestia do teu couro
folheando tuas rosas
descobrindo novos odores
chafurdando na poça
do teu sexo.

No final ouvia canções,
navegando ao sabor
dos teus predicados.
Repetia teus dengos
imitava teus olhos
sem conseguir uma linha
de tradução.

Lá vai ela, atravessando.
Ai Ana....
foi a exceção mais categórica
a ficção mais aberta
a estrofe mais curta
e marcante.

Entre pelos

Vem aqui felina,
curiosa e arisca
comer na minha mão.
Cintilando de um negro,
no livre emprego
de uma língua vaidosa.

Vem aqui fera
ingrata e sensível
que essa postura, segura!
Dá ganas de oferecer
a mão às mordidas...

Ensina-me esse sono
esse olhar langoroso
esse pulo manhoso
esse trote convencido
esse pedido decidido
esse ronronar impudico
esse charme contido
essa zombaria ultrajante
nas horas de abandono.

De pupilas, por vezes, distantes
me convence de que vem
de algum lúgubre vale
e, confundida na noite,
uma tristeza me invade
exigindo desculpas
por ter de implorar
um último afago.

Conselhos

Acordei ao lado de segredos
acumulados na minha coberta
e babando no meu travesseiro.

E agora que sou eu
tava ali naquele universo
gerente de necessidades
como qualquer ser humano.

Onde estavam meus conselheiros
quando fucei gavetas
procurando mapas perversos?

E pra que dependi de calendário
pra revisitar sozinho
meus próprios dias santos
e fabricar meus feriados?

Quando for tirar umas férias
vingando um sabor salgado
zombando o azar dos acasos
o poder dos culpados
e o poder de culpar,
vou desovar tartarugas
relançando no mar avisos
de promessas centenárias.